domingo, 23 de março de 2008

A vida


Eu quase vi a morte.
Quase, porque ver mesmo e sair ilesa de perto dela é um privilégio.
Eu quase a vi por um segundo.
E gritei.
Não pensei no meu corpo sendo esfacelado pelo carro que vinha na minha direção.
Não pensei na dor que eu poderia sentir, não pensei no medo, não pensei em mim.
E não cheguei a pensar, nem por um instante, no filme da minha vida ou no meu futuro perdido.
Pensei nas conseqüências que ela traria para a vida daqueles que estão ao meu redor, na dor de quem visse meu corpo machucado, no medo que meus pais têm de me perder.
É triste pensar na morte. É mais triste pensar na morte de quem você ama. Conceber minha vida sem eles é aceitar a minha morte em seguida. Assinar um contrato com a tristeza. Pactuar com depressão. E quanto mais gente você ama, mais impossível fica viver sem medo de perder. Não a vida, eles.
É por isso que se quase vive. O resto é ter medo.

terça-feira, 11 de março de 2008

O Libertador


Será que é possível manipular alguém?

Perguntou o paciente. Era a pergunta adequada à pessoa adequada. Que não respondeu.

Na noite anterior foram a uma festa e lá beberam bastante. Foram conduzidos pelo álcool a atitudes de concupiscente pureza. Era a libertação. Ele podia, Ele deixava, Ele permitia e Se permitia. Era uma dádiva que um humano concebia.

O suficiente para que a deificação fosse concluída. Na manhã seguinte, muitas dúvidas pairavam sobre o paciente, mas somente a certeza da libertação era latente. Quem o libertou?

O paciente agora andava pelas calçadas da cidade com uma leveza estranha no sorriso, um pesado olhar de serviço incompleto. Agora, podia se dar alta e se permitir.

Na noite seguinte conseguira sair novamente, lá encontrou uma garota com quem conversou durante uma hora. Ela o havia dito coisas sobre sua existência naquela cidade. Sobre sua sobrevivência naquele apartamento minúsculo, sobre sua subserviência ao seu emprego medíocre. Mas ela ainda se considerava feliz, pois tinha todos os dedos das mãos, os braços, as pernas e um rosto bonito. Ele decidiu pôr em prática a arte da libertação.

Chamou-a para perto e lhe disse palavras bonitas. Foi o bastante. Em seguida, trouxe à tona uma série de questões que atormentam uma mulher igualmente medíocre. O casamento, filhos, profissão, realização. Uma carteira de motorista, ao menos. Uma amiga com quem se pudesse contar. Roupas, acessórios, algum enfeite no cabelo. Não, nada disso fazia parte da sua lista. Mas ele a amou ainda assim. Foi único e se foi, como todo o resto que ela possuía. Tudo tão passageiro que ela compreendeu o que ele queria dizer com a libertação.

Na manhã seguinte, saía a manchete nos jornais: Garota de 22 anos se mata em apartamento na Avenida São João.

Agora a libertação ficou negra, e suas mãos cabiam numa espécie de líquido argiloso com cheiro de sangue, gosto de álcool e cor de lama debaixo da água que corria da pia. Recorreu ao libertador.

Lá encontrou mais uma vez conforto num abraço apertado, fraternal, com técnicas de acalento. Encontrou mais uma vez o que precisava para ficar em paz para consigo. Uma paz estranha. Uma paz que mantinha em sua face um olhar pesado e uma leveza no sorriso. Foi para casa, molhou mais uma vez suas mãos e as sentiu limpa. Comeu um sanduíche e foi dormir.

Quando amanheceu foi ao trabalho, digitou, telefonou, leu e escreveu. Procurou nos classificados quem comprasse máquinas de escrever. Provavelmente colecionadores, na era da informática. Estavam ocupando espaço no seu escritório, tinham sido do seu Pai em épocas remotas. Encontrou comprador.

Foi até o local marcado para a entrega.

Era um escritor com manias retrógradas e arcaicas. Traduzia obras de escritores ingleses pouco conhecidos. Alguns, inspirados em Shakespeare, outros em literatura policial do século XIX. Nada muito original, por isso a falta de sucesso. Mas o escritor se mantinha na idéia de trazer ao público brasileiro coisas “frescas” da Europa. O paciente sentiu-se interessado em algumas das obras, principalmente as que tratavam da mente humana. Porque não um café?

Lá, descobriram afinidades, entre goles quentes e piadas de descontração. Naquele momento, todos que passassem pela mesa do pequeno restaurante de beira de esquina pensariam que se tratava de amigos de longa data. Puseram-se a beber doses mais quentes, talvez conhaque. E a sorrir mais da vida e da literatura que a imita. Mas não citaram nenhuma mulher pela qual tomariam veneno. Exceto uma, talvez. Pensou o escritor. Aquela mulher a quem tanto amou. E durante anos se dedicou praticamente por inteiro àquele relacionamento volátil. Foram necessárias apenas duas semanas. E um outro homem.

Não acontecia com o paciente. Não era admissível. Era bajulação demais para seu ego. Era dependência. E ele amava a liberdade.

Mas o escritor não conseguia se libertar e se aprisionava ainda mais, agora com goles de absinto. E mais uma decisão era tomada em prol da libertação. O paciente então dera a carona para a morte da doce amada do escritor solitário.

A culpa já não o consumia. Começara a acreditar que todas as suas ações eram explicáveis. Perfeitamente explicáveis e compreensíveis. Ora, vejam só! Ele começava a ver o mundo com um propósito, uma ideologia, uma vocação. Era apenas a ponte, ele repetia, para a libertação.

Voltou ao seu médico que o explicou o sentido da vida. E ele compreendeu.

Daquela data em diante andava pelas ruas analisando pessoas com potencial para a prisão. Precisava alertá-las do perigo de não se libertar agora daquilo que os faz sofrer. Eliminação, método conhecido, milenar. Fácil e rápido. E sem deixar vestígios de culpa, nem rastros de dor ou pistas de incriminação. Ele descobria que aquela pessoa que se mostrava não era seu outro eu. Encontrara-se pleno agora, disposto a ajudar. Único.

E na mesma noite saiu em busca de uma mente sem controle. Em busca de uma paixão. Mais alguém a quem devesse libertar.


L.C.